Ato II

01-10-2010 21:10

 

CENA I

 

Westminster. Uma rua. Entram dois gentis-homens, que se encontram.

 

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Por que tamanha pressa?

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Oh! Deus vos guarde. Ia direito à sala do conselho para ouvir o que vão fazer do grande Duque de Buckingham.

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Então vos poupo, senhor, esse trabalho. Já está tudo concluído, tirante a cerimônia de levar novamente o prisioneiro.

SEGUN1)O GENTIL-HOMEM — Estivestes presente?

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Sim, decerto.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Que aconteceu? Dizei-me, por obséquio.

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Adivinhar podeis mui facilmente.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Ficou reconhecida a culpa dele?

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Sem dúvida nenhuma, tendo sido, como tal, condenado.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Triste fico perante essa notícia.

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Como muitas outras pessoas.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Mas, por gentileza, como se passou tudo?

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Vou contar-vos em resumo o que vi. O grande duque apresentou-se ao tribunal, e a todos os itens que contra ele formularam respondeu, declarando-se inocente e alegando razões de muito peso porque da lei livrar-se conseguisse. O advogado do rei, por outro lado, fazia carga sobre o questionário, provas e confissões das testemunhas, com as quais o duque quis ser confrontado para, de viva voz, poder falar-lhes, depois do que contra ele depuseram seu intendente, Sir Gilberto Peck, também chanceler dele e, assim, John Car, que foi seu confessor, e aquele monge diabólico, sim, Hopkins, que culpa teve de tudo.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Não foi esse monge que o empanturrou com suas profecias?

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Precisamente. Todos o acusaram com veemência. De grado ele teria destruído tantas provas; mas não pode. E assim, ante a evidência, os próprios pares o declararam réu de alta traição. Ele se defendeu por muito tempo e com sabedoria, porque a vida viesse a salvar; mas tudo foi somente lastimado ou esquecido na mesma hora.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — E após isso, como ele se portou?

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Ao ser trazido novamente à barra do tribunal para o funéreo toque, sua sentença, ouvir, de grande angústia ficou tomado, em bagas lhe escorrendo pelas faces o suor; falou colérico qualquer coisa, apressado e sem sentido. Porém voltou a si em pouco tempo e, serenado, até o fim mui nobre resignação mostrou.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Não acredito que tenha medo à morte.

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Não, decerto; jamais foi pusilânime. Contudo, tinha razão para ficar nervoso.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Com certeza o cardeal tem parte nisso.

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — A pensar desse modo nos obrigam todas as conjeturas. De começo, foi detido Kildare, quando ainda era deputado da Irlanda. Uma vez ele retirado do posto, foi mandado para substituí-lo o Conde Surrey, com toda a urgência, porque não pudesse levar auxílio ao pai.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Essa manobra política revela muita astúcia.

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Quando o conde voltar, isso é certeza, há de querer vingar-se dele. É fato mui notório que todas as pessoas que o monarca distingue, logo arranja jeito o cardeal para ocupá-la alhures, bem distante da corte.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Todo o povo lhe vota ódio entranhado e, por minha alma, desejaria de bom grado vê-lo dez braças sob a terra, enquanto ao duque todos são afeiçoados, só o chamando de generoso Buckingham é espelho de toda a cortesia.

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Fazei pausa nessa altura, senhor, e vede o nobre par arruinado, sobre que faláveis.

(Entra Buckingham, reconduzido do julgamento; oficiais de justiça o precedem, de machado, com o corte virado para o lado dele; alabardeiros de ambos os lados. Vêm com ele Sir Tomás Lovell, Sir Nicolau Vaux, Sim William Sands e gente do povo.)

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Vamos ficar mais perto, para vê-lo.

BUCKINGHAM — Ó boa gente que de longe viestes por vos compadecerdes de meu fado: ouvi quanto vos digo e, abandonando-me, retornai para casa. Hoje a sentença recebi de traidor, sendo forçoso morrer com esse labéu. Contudo, sirva-me o céu de testemunha: caso eu tenha consciência, só desejo que, no instante de cair o machado, ela me deixe, tendo eu sido desleal. Não recrimino por minha morte a lei: justa foi ela, uma vez admitidas as premissas. Porém que fossem mais cristãos quisera aqueles que a aplicaram. Mas perdôo-lhes quanto eles intentaram. Não se mostrem jactanciosos, no entanto, na malícia, nem pretendam construir sua maldade no sepulcro dos grandes, que contra eles meu inocente sangue clamaria. Esperança não tenho de esta vida terrena prolongar, nem imploro isso, ainda que mais graças o rei tenha do que eu pecados cometer ousasse. Ó vós, pequeno número de amigos que me tendes amor e revelastes coragem de chorar a triste sorte de Buckingham, seus nobres companheiros e amigos, cuja despedida é a única amargura, para ele como a morte: como anjos bons vinde até o fim comigo. E quando sobre mim cair o longo divórcio de aço, um doce sacrifício fazei com vossas preces, elevando minha alma para o céu. Vamos; levai-me logo, em nome de Deus.

LOVELL — Por caridade suplico a Vossa Graça: se algum ódio em qualquer tempo contra mim guardastes no coração, perdoai-me francamente.

BUCKINGHAM — Sim Tomás Lovell, tudo vos perdôo, tal como desejara ser perdoado. Perdôo tudo. Haver não pode ofensas inumeráveis que eu capaz não seja de esquecer por completo. A negra inveja não há de assinalar-me a sepultura. Recomendai-me a sua Graça; caso a Buckingham venha ele a referir-se, dizei-lhe, por obséquio, que o encontrastes a caminho cio céu. Meus votos todos e as orações ao rei dizem respeito, e enquanto não se despedir minha alma, só há de suplicar bênçãos para ele. Que mais anos viver ele consiga do que tempo me sobra de contá-los. Amado e amável seja seu governo. E ao baixar ao sepulcro em muita idade, num monumento viva com a bondade.

LOVELL — É preciso que eu leve Vossa Graça para o outro lado da água, onde este encargo transmitirei a Sir Nicolau Vaux, que ao vosso fim terá de acompanhar-vos.

VAUX — Preparai tudo! O duque está chegando. Ponde a barca de jeito e decorai-a de acordo com a grandeza que lhe é própria.

BUCKINGHAM — Não, não, Sir Nicolau; deixai tudo isso, que minha posição, de agora em diante, de mim só poderá fazer chacota. Quando aqui vim, era o alto condestável, Duque de Buckingham; porém agora sou apenas o pobre Eduardo Bohun. Porém mais rico sou do que os meus baixos acusadores, que jamais souberam o que fosse a lealdade, que ora eu selo com o próprio sangue, o qual há de fazê-los algum dia gemer. Meu nobre pai, Henrique de Buckingham, que contra a tirania de Ricardo foi o primeiro a rebelar-se, tendo pedido asilo em casa de seu criado Banister, porque estava na desgraça, foi traído por esse miserável, vindo logo a morrer sem julgamento. Que a paz de Deus seja com ele! Henrique VII, ao trono após tendo subido, sinceramente lastimando a sorte de meu pai, como príncipe às direitas, reintegrou-me nas honras e das ruínas fez meu nome sair com maior brilho. Mas agora seu filho Henrique VIII vida, honra e nome, quanto me deixava feliz, de um golpe fez que para sempre sumisse deste mundo. Julgamento concedido me foi, sendo forçoso que o declare: mui nobre, isso me deixa um pouco mais feliz do que o meu muito desventurado pai. Mas numa coisa nos iguala o destino: o termos sido traídos pelos criados, justamente pelas pessoas a que mais amávamos. Desleal serviço e contra a natureza! Seus fins o céu em toda a parte mostra. Porém vós que me ouvis, de um moribundo recebei este aviso indubitável: Sempre que fordes liberal com vossos conselhos e afeição, tende cautela, pois os próprios amigos que fizerdes, o coração lhes dando, ao perceberem a menor diferença em vossa sorte, de vós se afastarão como o faz a água, só retomando para assoberbar-vos e tragar-vos por fim. Gente bondosa, rezai por mim. Forçoso é que vos deixe. A hora postrema já soou de minha vida tão dilatada e cansativa. Adeus. Quando algo triste relatar quiserdes, contai como eu caí. Aqui termino. E que Deus me perdoe.

(Sai Buckingham e o séquito.)

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Que coisa lamentável! Isso chama, senhor, receio-o muito, inumeráveis maldições sobre os próprios responsáveis.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Se inocente estiver o duque nisso, é terrível, de fato. No entretanto, poderia mostrar-vos uns indícios de uma calamidade em perspectiva, que, se vier a se dar, será, sem dúvida, muito maior do que esta.

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Anjos bondosos, afastai-a de nós! Qual será ela? Confiai, senhor, tenho certeza disso, em minha discrição.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Esse segredo é de tal monta que requer a máxima confiança porque possa ser contado.

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Revelai-mo; não sou de muita prosa.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Confio em vós, senhor; vou revelar-vo-lo. Não ouvistes, acaso, alguns rumores nestes últimos dias sobre o próximo divórcio entre o monarca e Catarina?

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Ouvi, mas já passou, pois o monarca ficou encolerizado quando soube do que se comentava e mandou ordem para o Lorde Maior, porque fizesse parar in continenti esses rumores e as línguas responsáveis aquietasse.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Contudo, meu senhor, essa calúnia mostrou-se verdadeira, pois renasce com mais viço que nunca, estando todos convictos de que o rei vai tentar isso. Se não foi o cardeal, um dos validos da corte, por maldade tão-somente contra a boa rainha, sugeriu-lhe certo escrúpulo que há de arruiná-la. Confirma-se a notícia com a chegada muito recente do Cardeal Campeio, que veio só para isso, julgam todos.

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Foi o cardeal, é certo; e tão-somente para do imperador tomar vingança, por não haver obtido o arcebispado de Toledo, conforme lhe pedira.

SEGUNDO GENTIL-HOMEM — Estou certo de que batestes no alvo. Mas não é doloroso que seja ela, justamente, que venha a pagar tudo? Obterá o cardeal o que deseja, que é a queda da rainha.

PRIMEIRO GENTIL-HOMEM — Oh! é terrível. Mas aqui nos achamos muito à vista, para falarmos disso. Conversemos mais de espaço em algum lugar seguro.

(Saem.)


 

CENA II

 

Uma antecâmara do palácio. Entra o Lorde Camareiro lendo uma carta.

 

CAMAREIRO — “Milorde: os cavalos que Vossa Senhoria encomendou foram, com todo o zelo, escolhidos por mim, montados e arreados. Eram mui novos e vistosos, e da melhor raça do Norte. Quando tudo já se achava no jeito de serem eles enviados para Londres, um dos homens do Lorde Cardeal, munido de comissão e de plenos poderes, mos arrebatou, sob a alegação de que seu amo tinha de ser servido, antes de qualquer súdito e até mesmo antes do rei, o que nos entupiu a boca, senhor.” Sim, receio que o seja. Pois que fique com eles! Quer ficar com tudo, penso.

(Entram os Duques de Norfolk e de Suffolk.)

NORFOLK — Feliz encontro, Lorde Camareiro.

CAMAREIRO — Muito bom dia para Vossas Graças.

SUFFOLK — Que faz o rei?

CAMAREIRO — Deixei-o só, entregue a pensamentos tristes e a cuidados.

NORFOLK — E qual a causa disso?

CAMAREIRO — O casamento com a mulher de seu mano, ao que parece, mui de perto perturba-lhe a consciência.

SUFFOLK — Não; a consciência dele é que perturba de perto outra senhora.

NORFOLK — É assim, realmente. É obra do cardeal; do rei-cardeal. Esse filho dileto da fortuna, esse padre sem olhos, vira todas as coisas pelo avesso. Mas um dia quem ele é há de o rei ficar sabendo.

SUFFOLK — Deus o permita; pois, de outra maneira, jamais há de a si mesmo conhecer-se.

NORFOLK — Que santidade em todos os seus atos! Que zelo põe em tudo! Agora que ele a liga pôs por terra que entre o grande sobrinho da rainha e nós havia, o imperador, no coração mergulha do nosso rei, onde semeia dúvidas, remorsos de consciência, desesperos, perigos e temores, e tudo isso só por motivo desse casamento. E para o rei tirar desse embaraço aconselha o divórcio, a jogar longe de si próprio quem, como jóia rara, lhe pendeu do pescoço por vinte anos, sem que perdesse o brilho, a da que o ama com esse amor inefável que dedicam aos homens bons os anjos, juntamente a ela, que até sob o mais rude golpe da sorte, ainda abençoará o rei. Tudo isso não revela santidade?

CAMAREIRO — Deus me proteja contra tais alvitres! É bem verdade que essas novas andam por toda a parte; todos as comentam, sem que haver possa coração honesto que por isso não chore. Quem de perto se atreve a examinar esse negócio, o fim supremo dele enxerga logo: a irmã do Rei da França. O céu um dia os olhos há de abrir ao rei, que, para este homem mau, há tanto tempo dorme.

SUFFOLK — E livrar-nos de sua servidão.

NORFOLK — Precisamos rezar com fervor para sermos libertados; caso contrário, esse homem prepotente, de príncipes que somos, a nós todos vai transformar em pajens. Diante dele todas as honrarias a aparência tomam de massa informe que ele molda como bem lhe parece.

SUFFOLK — Por meu lado, senhores, nem amor ele me inspira, nem medo em mim desperta. Eis o meu credo. Não lhe devendo o meu estado, fico sendo o que sou, se ao rei for isso grato. Suas bênçãos me são indiferentes e suas maldições: um simples vento que passa sem ferir-me. Conheci-o como o conheço ainda; assim, o entrego a quem o fez tão orgulhoso: ao papa.

NORFOLK — Vamos entrar. Quem sabe se outro assunto distrai o rei dessas idéias tristes que tanto ora o deprimem? Companhia não nos fareis, milorde?

CAMAREIRO — Desculpai-me, mas o monarca me enviou alhures. Além do mais, receio que o momento não seja muito próprio... A ambos desejo muita e muita saúde.

NORFOLK — Agradecido, meu mui bondoso Lorde Camareiro.

(Sai o Lorde Camareiro.)

(Norfolk abre uma porta de duas folhas; aparece o rei, sentado e lendo com ar pensativo.)

SUFFOLK — Que ar de tristeza! É fato: algo o preocupa.

REI HENRIQUE — Olá! Quem está aí?

NORFOLK — Permita Deus que ele se encontre calmo.

REI HENRIQUE — Quem está aí? repito; como ousastes intrometer-vos desse modo em minhas meditações privadas? Quem sou eu?

NORFOLK — Um rei gracioso que perdoa a todas as ofensas isentas de maldade. Um negócio do Estado foi que a quebra do dever nos impôs, para sabermos qual seja a vossa decisão real.

REI HENRIQUE — Sois muito ousados. Ide! Hei de fazer-vos conhecer vossas horas de serviço.

(Entram Wolsey e Campeio.)

Quem está aí? Meu bom Lorde Cardeal! Ó meu Wolsey bondoso, o lenitivo de minha consciência tão ferida! És o remédio próprio de um monarca. (A Campeio.) Sois bem-vindo, mui sábio e reverendo senhor, a nosso reino. Podeis dele dispor como de nós. (A Wolsey.) Bondoso lorde, tomai cuidado para que eu não venha a dizer coisas sem nenhum sentido.

WOLSEY — Senhor, não nas direis, se Vossa Graça nos conceder uma hora apenas, para conversarmos à parte.

REI HENRIQUE — (a Norfolk e Suffolk) — Ide; estamos ocupados agora.

NORFOLK (à parte, a Suffolk) — Não é certo que esse padre é orgulhoso?

SUFFOLK (à parte, a Norfolk) — É insuportável. Não quisera estar doente até esse ponto, nem mesmo a troco de seu posto agora. Mas é impossível que isso continue.

NORFOLK (à parte, a Suffolk.) — Se tal se der, arriscarei medir-me com ele numa queda.

SUFFOLK (à parte, a Norfolk.) — Eu também, noutra.

(Saem Norfolk e Suffolk.)

WOLSEY — Deu Vossa Graça uma lição de grande sabedoria a todos os monarcas, submetendo de grado vossas dúvidas à voz da cristandade. Quem agora poderia mostrar-se aborrecido? Que ódio vos alcançara? A Espanha, pelo sangue e pelos favores a ela presa, terá de confessar, se for sincera, que o debate foi justo e em tudo nobre. Todo o clero — refiro-me aos mais sábios da cristandade — têm opinião livre. Roma, esse berço da sabedoria, por vossa solicitação enviou-nos uma língua geral, este bom homem, este santo e erudito sacerdote, Cardeal Campeio, que de novo apresento a Vossa Alteza.

REI HENRIQUE — E, de braços abertos, eu de novo lhe dou as boas-vindas, ao sagrado conclave agradecendo o amor que todos assim me certificam, pois me enviaram o homem que desejar eu poderia.

CAMPEIO — Vossa Graça merece o amor de todos os estrangeiros, por tão nobre serdes. Nas mãos de Vossa Alteza ora deponho minha alta comissão, por cuja força e expressa ordem de Roma, associais-vos comigo, servo dela, vós, milorde Cardeal de York, para, com isenção de ânimo, julgarmos esse assunto.

REI HENRIQUE — Ambos são dignos. Vai ficar a rainha neste instante sabendo o que vos trouxe. Onde está Gardiner?

WOLSEY — Sei bem que Vossa Majestade sempre a amou com tantas veras, que impossível vos será recusar-lhe o que outra dama de menos posição exigiria com base no direito: alguns juristas com liberdade para defendê-la.

REI HENRIQUE — Sim, poderá dispor dos mais notáveis; e desde já prometo o meu amparo para o que a defender com maior brilho. Deus o contrário disso não permita. Por obséquio, cardeal, chamai-me Gardiner, meu novo secretário. Acho-o muito hábil.

(Sai Wolsey.)

(Volta Wolsey com Gardiner.)

WOLSEY (à parte, a Gardiner.) — Dai-me a mão; alegria vos desejo, muita prosperidade. Desde agora pertenceis ao monarca.

GARDINER (à parte, a Wolsey.) — Porém para mandado sempre ser por Vossa Graça, cuja mão me elevou.

REI HENRIQUE — Vem para perto, Gardiner.

(Conversam à parte.)

CAMPEIO — Por acaso, Lorde de York, não ocupava um Doutor Pace o posto que este homem ora ocupa?

WOLSEY — Justamente.

CAMPEIO — E não passava por um grande sábio?

WOLSEY — Sem dúvida nenhuma.

CAMPEIO — Podeis crer-me, Lorde Cardeal, mas corre um boato feio que vos toca de perto.

WOLSEY — A mim! Como isso?

CAMPEIO — Sem reservas proclamam que o invejáveis. De medo que ele viesse a subir muito, por ser de grande mérito, o mantínheis ocupado nas cortes estrangeiras, o que tanto o magoou, que morreu louco.

WOLSEY — Que a paz do céu seja com ele. Como cristão é só o que digo. Para os vivos que murmuram, castigos não lhes faltam. Mas esse era um idiota, que queria ser virtuoso. Aquele outro que ali vedes faz tudo o que eu mandar, sem discrepância. Só quero gente assim junto do trono. Aprendei isto, irmão: não desejamos ser perturbados pelos subalternos.

REI HENRIQUE — Entregai com respeito isto à rainha.

(Sai Gardiner.)

Quero crer que o lugar mais adequado para essa erudição seja Black-Friars. Ali vos reunireis para esse assunto de tamanha importância. Meu caro Wolsey, mandai arranjar tudo. Oh! como custa, milorde, para quem tem sentimento, abandonar tão doce companheira. Mas, consciência, consciência! És delicada por demais. É preciso abandoná-la.

(Saem.)


 

CENA III

 

Uma antecâmara dos aposentos da rainha. Entram Ana Bolena e uma velha dama da corte.

 

ANA — Por isso também não. Nisso é que o espinho nos provoca mais dor. Tendo Sua Alteza vivido ao lado dela tanto tempo, e sendo ela senhora tão bondosa, que jamais língua alguma dizer pode nada contra sua honra... Sim, de fato: nunca a ninguém fez mal... E agora, tendo ficado sobre o trono tantos cursos do sol, em plena pompa e majestade, que deixar é mil vezes mais amargo do que é doce alcançar, ser repelida depois de ter vivido desse modo, comover poderia qualquer monstro.

A VELHA DAMA — Os corações da têmpera mais dura se fundem em lamentações por ela.

ANA — O céu assim o quis. Bem melhor fora não ter a pompa conhecido nunca. Conquanto temporal, quando a Fortuna rixenta nos obriga a abandoná-la, produz-se um sofrimento tão pungente como o de separar-se do corpo a alma.

A VELHA DAMA — Volta a ser estrangeira! Pobre dama!

ANA — Mais um motivo para que a piedade se derrame sobre ela. Pois vos juro que é preferível vir de um berço obscuro e contente viver com gente humilde, a pavonear-se numa dor brilhante e carregar uma tristeza de ouro.

A VELHA DAMA — O que de melhor temos é a alegria.

ANA — Por minha fé e minha virgindade, não desejara ser rainha nunca.

A VELHA DAMA — Pois eu quisera sê-lo, por minha alma, e a própria virgindade arriscaria, bem como vós, com todo esse tempero de falsidade. Sendo possuidora, como o sois, dos encantos femininos, também tereis um coração de acordo, que sempre ambicionou a preeminência, soberania, bens, que são legítimas bênçãos, para ser franca, sendo certo que, a despeito de todos esses dengues, vossa consciência branda como pele de cabrito decerto aceitaria, bastando que para isso a distendêsseis.

ANA — Não, não, por minha fé.

A VELHA DAMA — Qual fé, qual nada! É certo: não quiséreis ser rainha?

ANA — Não, por quanto ouro sob o céu se encontra.

A VELHA DAMA — interessante! Pois qualquer moedinha me compraria — velha como me acho — para subir ao trono. Mas dizei-me, por favor, que pensais de uma duquesa? Tendes força bastante para o peso suportar desse título?

ANA — Nenhuma.

A VELHA DAMA — É que nascestes fraca. Diminuamos a carga um pouco. Não quisera ver-me em vossa estrada, como um conde jovem, para deixar-vos mais do que corada. Se vosso dorso não suporta o fardo, é que para uma criança é muito fraco.

ANA — Como falais! Pois juro novamente que nem por todo o mundo eu desejara chegar a ser rainha.

A VELHA DAMA — É muito certo: pela Inglaterrazinha arriscaríeis empunhar firme o cetro. Eu, do meu lado, fá-lo-ia pelo Carnavon, embora não mais do que isso pertencesse ao trono. Mas quem vem vindo aí?

(Entra o Lorde Camareiro.)

CAMAREIRO — Muito bom dia, minhas senhoras. Quanto me pedíreis para me revelardes o segredo sobre que conversáveis?

ANA — Não compensa vossa pergunta, meu bondoso lorde. A falar nos achávamos da sorte de nossa soberana.

CAMAREIRO — Mui louvável tema, decerto, e em tudo condizente com o sentimento de pessoas boas. Mas há esperança de que tudo ainda venha a terminar bem.

ANA — É só o que a Deus peço. Que assim seja.

CAMAREIRO — Tendes mui nobre coração. As bênçãos celestes caem sempre nas pessoas semelhantes a vós. E, bela dama, para mostrar-vos quão sincero eu falo e a que ponto têm sido apreciadas vossas altas virtudes, a grandeza do rei vos testemunha seu apreço, determinando honrar-vos de maneira não menos florescente do que o título de Marquesa de Pembroke vos dando, ao qual Sua Graça uma pensão ajunta de mil libras anuais.

ANA — Saber não posso de que maneira demonstrar-lhe todo meu reconhecimento. Tudo quanto sou é menos que nada; minhas preces não são santificadas, não passando meus votos de palavras sem substância. Ainda assim, só posso oferecer-lhe meus votos e orações. Suplico a Vossa Senhoria que exprima toda a minha gratidão e obediência a Sua Alteza, como de jovem que enrubesce e reza pela saúde dele e seu governo.

CAMAREIRO — De reforçar não deixarei, senhora, a opinião favorável que o monarca tem a vosso respeito. (A parte.) Examinei-a muito bem. A beleza e a dignidade de tal maneira nela se misturam, que o rei deixaram preso. Quem nos diz que desta dama não sairá uma jóia capaz de iluminar toda nossa ilha? (Alto.) Vou ver o rei; direi que nos falamos.

ANA — Muito estimado lorde!

(Sai o Lorde Camareiro.)

A VELHA DAMA — Como as coisas se passam! Vede! Vede! Dezesseis anos mendiguei na corte, e ainda sou mendiga, sem que nunca entre o cedo demais e o muito tarde pudesse achar o meio certo para meus pedidos de libras. E, oh destino! vós, um peixinho novo — fora! fora! com a sorte tão forçada! — encheis a boca antes mesmo de abri-la.

ANA — Estou perplexa.

A VELHA DAMA — Que gosto tem? É amargo? Não, aposto quarenta pences em como é bem gostoso. Era uma vez uma senhora — antigo conto assim começava — que por nada deste mundo quisera ser rainha; em absoluto, nem por toda a lama do Egito. Conhecei-lo?

ANA — Estais brincando.

A VELHA DAMA Com vosso tema aos céus eu remontara. Marquesa de Pembroke! Com uma renda de mil libras, por pura reverência, sem outra obrigação! Por minha vida, isso promete mais alguns milheiros. A cauda da grandeza é mais comprida que a frente do vestido. Agora vejo que podeis carregar uma duquesa. Não é certo que agora estais mais forte?

ANA — Minha boa senhora, distraí-vos com vossa fantasia, mas deixai-me fora desse brinquedo. Morrer quero, se isso é capaz de alvoroçar-me o sangue. Desfalecer me sinto à só idéia do que virá depois. A rainha se encontra inconsolável e nós nos esquecemos dela, ausentes assim por tanto tempo. Por obséquio, nada deveis dizer-lhe do que ouvistes.

A VELHA DAMA — Decerto! Que pensais a meu respeito?

(Saem.)


 

CENA IV

 

Uma sala em Black-Friars. Trombetas; fanfarras e toque de cornetas. Entram dois oficiais de justiça com varinhas de prata; seguem-nos dois escrivães com vestes de doutor; a seguir, o Arcebispo de Cantuária, sozinho; depois, os Bispos de Lincoln, Ely Rochester e Santo Asaph. Depois deles, a pequena distância, vem um gentil-homem com uma bolsa, o grande selo e um chapéu cardinalício; depois, dois padres, trazendo cada um uma cruz de prata. A seguir, entra um gentil-homem da câmara do rei, com a cabeça descoberta, acompanhado de um sargento de armas, que traz um cetro de prata; depois, dois gentis-homens, carregando dois grandes pilares de prata. Depois deles, lado a lado, os dois cardeais, dois cavalheiros com espada e cetro. Depois entram o rei e a rainha, com os respectivos séquitos. O rei se assenta sob o baldaquim; os dois cardeais se sentam abaixo dele, como juizes; a rainha se assenta a certa distância do rei; os bispos se colocam de cada lado da corte, em forma de consistório. Abaixo deles, os escrivães. Os nobres se sentam junto dos bispos. O pregoeiro e os outros oficiais de serviço se colocam no palco em ordem conveniente.

 

WOLSEY — Até que nossa comissão de Roma seja lida, mandai que haja silêncio.

REI HENRIQUE Qual a necessidade disso? Feita já foi publicamente essa leitura; sua validez está reconhecida de ponta a ponta. Assim, fora possível poupardes Esse tempo.

WOLSEY — Seja. Adiante!

ESCRIVÃO — Gritai: Rei Henrique da Inglaterra, comparecei a este tribunal!

PREGOEIRO — Rei Henrique da Inglaterra, comparecei a este tribunal!

REI HENRIQUE — Presente.

ESCRIVÃO — Gritai: Catarina, Rainha da Inglaterra, comparecei a este tribunal!

PREGOEIRO — Catarina, Rainha da Inglaterra, comparecei a este tribunal!

(A rainha não responde; levanta-se de seu lugar, atravessa a sala, dirige-se para o rei, ajoelha-se aos pés dele e depois fala.)

RAINHA CATARINA — Só direito e justiça é o que vos peço, senhor, e que de mim tenhais piedade. Sou uma pobre mulher, uma estrangeira, que veio ao mundo longe dos domínios que vos são próprios. Não disponho agora nem de juiz imparcial nem de esperança de tratamento equânime da corte. Ai de mim! Em que posso, acaso, tem-vos ofendido, milorde? Que motivo de desgosto vos deu minha conduta, para pensardes em mandar-me embora, de vossa graça e afeto me privando? O céu é testemunha de que sempre vos fui esposa humilde e verdadeira; sempre me conformei ao vosso alvitre; com medo sempre, até, de despertar-vos desgosto, busquei sempre acomodar-me ao menor gesto vosso, alegre ou triste, conforme vos notasse. Em que momento tentei opor-me a qualquer ordem vossa, sem que fizesse minha? A qual dos vossos amigos por amar não me esforcei, muito embora na conta de inimigo sempre o tivesse tido? Ou a que pessoa de minhas relações eu continuei revelando afeição, quando ela vossa cólera provocasse? Na mesma hora não lhe fazia ver que passaria daí por diante a ser meu inimigo? Recordai-vos, senhor, de que durante mais de vinte anos, obediente sempre, hei sido vossa esposa e tive a bênção de vos dar muitos filhos. Se no curso desse tempo puderdes um só fato mencionar e provar contra minha honra, minha fidelidade, meu afeto, o respeito que devo a vossa sacra pessoa: em nome, sim, de Deus, lançai-me de vossa vista e que o mais negro opróbrio venha fechar-me as portas, entregando-me ao rigor mais severo da justiça. Escutai-me, senhor: o soberano vosso pai sempre foi considerado um príncipe prudente, de excelente julgamento e de muita perspicácia. Ferdinando, meu pai e Rei da Espanha, passava pelo príncipe mais sábio daquela terra, desde muitos anos, sendo fora de dúvida, portanto, que em cada reino eles reunido houvessem um conselho de sábios, que julgaram legal nossa união, depois de haverem bem estudado o assunto. Por tudo isso, senhor, humildemente vos suplico que me poupeis até que eu tenha tempo de me comunicar com meus amigos de Espanha e lhes pedir que me aconselhem. Mas em nome de Deus, caso contrário, também nisso se faça o que quiserdes.

WOLSEY — Senhora, aqui dispondes destes padres reverendos — a escolha tendes livre — homens de singular integridade e, todos eles, de saber mui raro, a nata da nação, que aqui se encontram para vos defender. Inútil fora, por isso, adiar o julgamento, tanto para vosso sossego como para deixar o rei sem causa de inquietude.

CAMPEIO — Com todo o acerto e muito sabiamente Sua Graça falou. Por isso tudo, senhora, é conveniente que prossiga esta real sessão, devendo logo ser apreciadas as razões das partes.

RAINHA CATARINA — Lorde Cardeal, é a vós que eu me dirijo.

WOLSEY — Qual é o vosso prazer, minha senhora?

RAINHA CATARINA — Senhor, estou no ponto de chorar. Mas refletindo que rainha somos — pelo menos assim me vi em sonhos por muito tempo — e com certeza filha de um monarca, transformo minhas lágrimas em chispas abrasantes.

WOLSEY — Ficai calma.

RAINHA CATARINA — Ficarei, quando humilde vos mostrardes; antes, não, porque Deus me puniria. Creio, firmada em provas convincentes, que sois meu inimigo. Assim, declaro-vos suspeito para funcionardes como juiz em minha causa, pois as chamas que se alçam entre mim e meu marido nasceram de vosso hálito. Prouvera que o orvalho do Senhor possa apagá-las! Mais uma vez declaro: abominando-vos como vos abomino, com toda a alma, para meu julgador não vos aceito, porque — tomo a dizer — vos considero inimigo maldoso, e não vos posso ter em conta de amigo da verdade.

WOLSEY — Preciso confessar que vos estranho por causa da linguagem, que bondosa sempre vos revelastes, demonstrando disposição gentil e em tudo branda, sobre sabedoria patenteardes que ultrapassava o sexo. Enormemente, senhora, me ofendeis; ódio não tenho com relação a vós, nem fui injusto jamais convosco ou com qualquer pessoa. Tudo quanto até agora tenho feito, da comissão do consistório emana, direi melhor: de todo o consistório de Roma. Contra mim fizestes carga de que eu soprei as chamas deste incêndio. Não é assim, o rei está presente. Se ele achasse que falso eu me mostrara, em seu poder estava castigar-me mui merecidamente a falsidade, sim, com o mesmo rigor com que zurzistes minha veracidade. Se ele sabe que eu me encontro inocente dessa pecha, sabe também que me fazeis ofensa. Dele depende, assim, reabilitar-me, o que pode fazer de vós tirando semelhantes idéias. Por tudo isso, antes que Sua Alteza a falar venha, graciosa dama, instante vos conjuro a retratar-vos, nunca mais voltando a usar essa linguagem.

RAINHA CATARINA — Ó milorde! eu sou uma mulher simples, muito fraca para lutar com toda vossa astúcia. Sois brando e de linguagem sempre humilde. Exerceis vosso posto e ministério com mostras exteriores de brandura, de perfeita humildade, mas de orgulho tendes o coração inflado sempre, de arrogância e rancor. Favorecido pela fortuna e o amparo de Sua Graça, subir pudestes com facilidade os degraus mais de baixo, ora encontrando-vos numa altura em que todos os poderes se constituíram vossos seguidores. Vossas palavras, como humildes servos, prestam-se a executar vossos desejos em tudo o que quiserdes. Sou-vos franca: mostrais-vos mais zeloso do prestígio pessoal do que mesmo dos deveres de vossa profissão em tudo digna. Como juiz recuso-vos, declaro-o novamente; e ora, em frente de vós todos, apelo para o papa, resolvida a levar minha causa até à presença de Sua Santidade, porque seja julgada com justiça.

(Inclina-se diante do rei e faz menção de retirar-se.)

CAMPEIO — Mui rebelde contra a justiça mostra-se a rainha, inclinada a acusá-la e desdenhosa de suas decisões. Não é bom isso. Já se vai retirando.

REI HENRIQUE — Convocai-a novamente.

PREGOEIRO — Catarina, Rainha da Inglaterra, comparecei ante este tribunal!

GR1FFITH — Chamaram-vos, senhora.

RAINHA CATARINA — Por que prestastes atenção a isso? Segui vosso caminho, por obséquio. Dai meia volta, quando vos chamarem. Deus venha em minha ajuda; é insuportável. Vamos; não ficarei aqui mais tempo, nem nunca mais porei os pés nas cortes convocadas por causa deste assunto.

(Sai a rainha com seu séquito.)

REI HENRIQUE — Vai, Kate; continua teu caminho. Se houver no mundo quem ousar gabar-se de ter acaso esposa mais valiosa, que em nada seja crido após tão grande, tão patente mentira. Estás sozinha com tuas raras qualidades, tua bondade natural, benignidade como de santa, dignidade em tudo feminina, obediência no comando... Todas essas virtudes soberanas e religiosas, se falar pudessem, te aclamariam, bem o sei, rainha das rainhas da terra. Tem nobreza de nascimento, e por maneira nobre, com relação a mim, se portou sempre.

WOLSEY — Mui gracioso senhor, humildemente conjuro a Vossa Alteza que se digne declarar ante todos os presentes — pois onde eu fui roubado e acorrentado solto tenho de ser, mesmo no caso de não chegar a obter a merecida satisfação — se todo este negócio foi por mim sugerido a Vossa Alteza ou se, de qualquer modo, fiz escrúpulos em vós nascerem, que vos decidissem a propor a questão; se qualquer dito da boca me saiu — senão apenas louvores ao Senhor, por alcançado terdes tão alta esposa — que pudesse em detrimento vir do estado dela ou de leve atingir sua pessoa.

REI HENRIQUE — Milorde, eu vos desculpo. Por minha honra, absolto vos declaro. Não preciso dizer-vos quantos inimigos tendes, que o motivo de o serem desconhecem, aos cachorros de aldeia semelhantes, que ladram por ouvir ladrar os outros. Um desses contra vós fez irritar-se o ânimo da rainha. Desculpado — de todo vos achais. Mas se quiserdes que a justificação seja completa, direi que sempre desejastes que este negócio adormecesse, não querendo que fosse despertado. Muitas vezes, sim, muitos empecilhos levantastes nos caminhos que fossem dar até ele. Por minha honra declaro que o bondoso Lorde Cardeal não teve parte nisso. Absolvo-o por completo. Quanto às causas que me determinaram neste passo, da atenção dos presentes e do tempo pretendo ora abusar. Vede o começo. Foi assim; atenção prestai a tudo. Minha consciência viu-se perturbada pela Primeira vez, com certo escrúpulo, como que espicaçada, ante as palavras do embaixador francês numa dada época, o Bispo de Baiona, que aqui viera para negociar o casamento entre o Duque de Orléans e nossa filha Maria. No decurso das conversas, antes de termos assentado nada, ele — a saber: o bispo — requereu-nos que em suspenso deixássemos o assunto para que ele consulta ao rei fizesse sobre se nossa filha era legítima com relação ao nosso casamento com a rainha-mãe, que fora esposa de nosso próprio irmão. Esse intervalo abalou-me a consciência até ao mais fundo, na alma me penetrou com força ingente, a tremer o imo peito me deixando. Abrindo, assim, caminho, inumeráveis perplexidades em tropel afluíram, assoberbado me deixando o espírito. De início me ocorreu que o céu deixara de sorrir para mim, pois, tendo o mando sobre a natura, havia-lhe ordenado que se um filho varão de mim o ventre de minha esposa a conceber viesse, não lhe haveria de fazer serviço mais relevante do que faz aos mortos a sepultura. Com efeito: todos os filhos masculinos ou morriam onde gerados tinham sido, ou logo depois de respirarem o ar do mundo. Daí me ter nascido o pensamento de que isso era um castigo, que meu reino digno de ter o mais brilhante herdeiro, de mim não lhe viria essa alegria. Pus-me a pensar, depois, todo o perigo a que o país sujeito se encontrava, pela falta de herdeiro, o que do peito me arrancou sentidíssimos gemidos. Desse modo, flutuando no agitado mar de minha consciência, pus a mira neste remédio que é o motivo certo de nossa reunião. Por outros termos: pretendia aliviar minha consciência, que então sentia gravemente enferma e que ainda não se acha muito boa, em que possam ter feito os reverendos prelados e os doutores cá da terra. Comecei, Lorde Lincoln, consultando-vos em caráter privado. Certamente deveis estar lembrado como ao peso dessa opressão eu suspirava, quando pela primeira vez vos falei nisso.

LINCOLN — Perfeitamente, meu senhor.

REI HENRIQUE — Falei-vos longamente. Dizei vós mesmo agora o que, por consolar-me, então fizestes.

LINCOLN — Se a Vossa Majestade for do agrado, de tal modo confuso esse problema de início me deixou, não só por sua transcendente importância, como pelas terríveis conseqüências que seriam de esperar, que o conselho mais ousado à dúvida confiei, havendo logo proposto a Vossa Alteza a idéia que ora se concretiza aqui.

REI HENRIQUE — Falei convosco, Milorde de Cantuária, havendo obtido vosso consentimento para que esta reunião viesse a ser feita. Não há membro desta colenda corte que eu deixasse de consultar, foi tudo feito, tudo, com o apoio formal e o selo expresso ele cada um e de todos. Por tudo isso; prossegui, pois nenhuma antipatia contra a pessoa da gentil rainha, mas aqueles acúleos lancinantes das razões aduzidas suscitaram semelhante debate. Se provardes que nosso enlace é válido, por minha vida, por minha régia dignidade, felizes somos por participarmos com ela deste nosso mortal curso, com Catarina, nossa soberana, que antepomos a todas as criaturas do mundo, por mais primas e exemplares que porventura sejam.

CAMPEIO — Vossa Alteza me perdoe, mas a ausência da rainha nos impõe o adiamento desta corte. Até essa nova data deveremos insistir com empenho junto dela para que ela desista do recurso que em mandar pensa a Sua Santidade.

(Levantam-se para sair.)

REI HENRIQUE — Noto que estes cardeais estão fazendo troça de mim. Odeio essas delongas, essas manhas de Roma. Ó meu fiel Cranmer, meu sábio servidor e muito amado, conjuro-te a voltar, pois tua vinda, tenho certeza, me trará conforto. — Suspendei a sessão, digo... Saiamos.

(Saem todos, na mesma ordem com que entraram.)

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