Ato V

01-10-2010 21:06

 

ATO V

CENA I

 

Londres. Uma galeria do palácio. Entram Gardiner, Bispo de Winchester, um pajem com um archote, que encontram Sir Tomás Lovell.

 

GARDINER — Já é uma hora, menino?

PAJEM — Neste instante acabou de bater.

GARDINER — Uma hora dessas dicada deveria ser a nossas necessidades, não a diversões, momento para reparar as forças com salutar repouso, sem o tempo desperdiçarmos. Sir Tomás, boa noite. Para onde ides tão tarde?

LOVELL — Acaso viestes do rei, senhor?

GARDINER — Sim, Sir Tomás; deixei-o jogando uma partida de “primeiro” com o Duque de Suffolk.

LOVELL — Vou procurá-lo antes de ir me deitar. De vós despeço-me.

GARDINER — Não, não, Sir Tomás Lovell. Que acontece? Revelais muita pressa. Se puderdes — não havendo mal nisso — alguma coisa contai ao vosso amigo, do negócio que tão tarde vos prende. Esses assuntos que passeiam no jeito dos espíritos, à meia-noite, são de natureza mais estranha do que a dos que de dia procuram seu despacho.

LOVELL — Muito afeto vos dedico, milorde, e ouso confiar-vos segredo de mais peso que estas minhas ocupações. A soberana se acha em trabalho de parto e em grande risco; é o que dizem. Receio que sucumba.

GARDINER — Oro ferventemente pelo fruto que ela carrega, para que a bom termo venha a nascer e viva. Mas, quanto à árvore, Sir Tomás, vê-la quero sem raízes.

LOVELL — Capaz me sinto de dizer amém. Porém diz-me a consciência que ela é uma criatura boníssima, senhora de valor, que merece nossos votos.

GARDINER — Porém senhor, senhor! Prestai-me ouvidos, Sir Tomás. Sois fidalgo do meu jeito. Sei que sois muito sábio e religioso, mas deixai que vos diga: nunca, nunca há de isto acabar bem. Não, Sir Tomás, podeis acreditar-me, enquanto Cranmer e Cromwell, as mãos dela, juntamente com ela não dormirem no sepulcro.

LOVELL — Ora vos referistes aos dois homens mais notáveis do reino. Quanto a Cromwell, além de auferidor do real tesouro, foi nomeado arquivista e secretário de Sua Majestade, sem contarmos que se acha mesmo no momento azado de ter novos encargos. O arcebispo é a língua e a mão do rei; quem ousaria contra ele pronunciar uma só sílaba?

GARDINER — Há, sim, quem o ouse, Sir Tomás; eu próprio me arrisquei a expressar o pensamento. Hoje mesmo, senhor, posso dizer-vos, inculquei nos senhores do Conselho a idéia de que ele é — pois o conheço como tal, o que todos também sabem — um arqui-herético, uma pestilência que o país todo infecta. Comovidos com o que lhes disse, ao rei falaram logo, e este, do alto de sua grande graça, dos seus reais cuidados, pressentindo os terríveis perigos que lhe expunham nossas razões, ouviu nossos queixumes e convocou para amanhã bem cedo a reunião do Conselho. É erva daninha, Sir Tomás, que precisa ser cortada. Mas estou vos detendo muito tempo. Boa noite, Sir Tomás.

LOVELL — Muito boas noites. Ainda e sempre vosso servidor.

(Saem Gardiner e o pajem.)

(Entram o rei e Suffolk.)

REI HENRIQUE — Carlos, deixemos de jogar por hoje. Não me concentro; sois por demais forte.

SUFFOLK — Senhor, nunca antes de hoje eu vos vencera.

REI HENRIQUE — Sim, raras vezes, Carlos, e assim mesmo quando me distraía na partida. Lovell, então? Há alguma novidade da parte da rainha?

LOVELL — Pessoalmente não lhe dei a mensagem que mandastes, mas por uma de suas camareiras fi-la chegar a ela, que em resposta me disse que a rainha humildemente vos agradece e pede a Vossa Alteza rezar por ela com fervor agora.

REI HENRIQUE — Que disseste? Eu, rezar por ela? Como! Está sentindo dores?

LOVELL — Pelo menos, foi o que disse a sua camareira, havendo acrescentado que suas dores à dor da morte mesma quase igualam.

REI HENRIQUE — Pobre senhora!

SUFFOLK — Possa Deus do fardo aliviá-la com pouco sofrimento, porque se alegre Vossa Majestade com a vinda de um herdeiro.

REI HENRIQUE — É meia-noite, Carlos; vamos dormir. Em tuas preces não te esqueças de minha pobre esposa. Deixa-me só, pois tenho pensamentos que não vão bem na companhia de outrem.

SUFFOLK — São meus votos que Vossa Majestade tenha uma noite calma. Hei de lembrar-me da minha bondosíssima rainha nas minhas orações.

REI HENRIQUE — Boa noite, Carlos.

(Sai Suffolk.)

(Entra Sir Antonio Denny.)

Então, senhor: que é que há?

DENNY — Trouxe milorde arcebispo, senhor, como o ordenastes.

REI HENRIQUE — Como! Cantuária?

DENNY — Sim, meu bom senhor.

REI HENRIQUE — É certo, é certo. E onde está ele, Denny?

DENNY — Aguarda o bom prazer de Vossa Alteza.

REI HENRIQUE — Faze-o entrar.

LOVELL (à parte) — É sobre aquele assunto de que o bispo falou: cheguei a tempo.

(Volta Denny com Cranmer)

REI HENRIQUE — Deixai a galeria.

(Lovell faz menção de ficar.)

Não vos disse? Retirai-vos!

(Saem Lovell e Denny.)

CRANMER — Bastante medo sinto. Por que franze de assim o sobrecenho? O aspecto é do terror. Algo vai mal.

REI HENRIQUE — Então, milorde, desejais que eu diga porque vos fiz chamar?

CRANMER (ajoelhando-se.) — Ficar às ordens de Vossa Alteza é meu dever de súdito.

REI HENRIQUE — Levantai-vos, vos peço, meu gracioso Lorde de Cantuária. Vinde; juntos vamos dar uma volta. Tenho novas para contar-vos. Vamos: dai-me a mão. Ah! meu bondoso lorde, é com tristeza que vos falo; compunge-me o que tenho de vos dizer. Ouvi recentemente — contrariado, asseguro-vos — bastantes queixas de vós. É certo, é o que vos digo, milorde: queixas graves, que, tomadas em consideração, nós e o Conselho decidimos que à nossa frente viésseis esta manhã. E como estou convicto de que justificar-vos cabalmente não podereis, enquanto organizado não for o questionário a que resposta tereis de dar, será preciso agora que tenhais paciência muita, para na Torre preparar vossa morada. Por serdes par do reino, é necessário que eu faça, como faço; do contrário, não haverá ninguém que se resolva contra vós a depor.

CRANMER (ajoelhando-se) — Humildemente Vos agradeço. Mui feliz me sinto por se me oferecer esta excelente ocasião de no crivo ser passado, vindo a ficar, assim. todo o meu trigo separado do joio, pois é certo que não há quem como eu — um pobrezinho — se veja alvo das línguas caluniosas.

REI HENRIQUE — Bom Cantuária, levanta-te; a lealdade, a integridade que te é própria, criaram raiz profunda em nós, em teu amigo. Dá-me tua mão; levanta-te; passemos, por obséquio. Mas, pela Mãe de Deus, que espécie de homem sois? Eu estava certo, milorde, de que havíeis de pedir-me que eu me desse ao trabalho de levar-vos à presença de vossos inimigos, e mais: de vos ouvir em liberdade.

CRANMER — Augusto soberano, só me apoio na minha honestidade e em meu direito. Se eles me abandonarem, juntamente com meus inimigos cantarei triunfo, por ver-me derrubado, pois sem eles careço de valor. Não tenho medo de quanto contra mim possa dizer-se.

REI HENRIQUE — Não sabeis o que todo o mundo sabe, qual seja a vossa situação no mundo? São numerosos vossos inimigos, e não pequenos; suas artimanhas são de igual importância, sendo certo que nem sempre a justiça de uma causa sentença favorável assegura. Com que facilidade almas corruptas podem peitar escravos corrompidos, para em juízo deporem? Fatos desses já têm acontecido. Muito fortes são vossos inimigos, de maldade que ao seu poder se iguala. Estais bem certo de que nisso de falsas testemunhas vireis a ter mais sorte do que o Mestre de que ministro sois, durante o tempo em que passou pela mesquinha terra? Vamos, vamos! julgais seja possível sem perigo saltar um precipício, e procurais a própria destruição.

CRANMER — Que Deus e Vossa Majestade amparem minha inocência, pois de outra maneira fugir não poderei desta armadilha.

REI HENRIQUE — Criai coragem. Não irão mais longe do que eu lhes permitir. Tranqüilizai-vos sem que pela manhã à frente deles deixeis de aparecer. Se porventura vossa prisão pedirem, em virtude das queixas contra vós acumuladas, não deixeis de usar grandes argumentos de poder persuasório, com a veemência que a ocasião vos ditar. Se vosso esforço não vos der resultado, apresentai-lhes este anel e apelai para nós próprio, na frente deles todos. Mas que é isso. A chorar o bom homem! Por minha honra, é honesto. Pela santa Mãe de Deus, é de coração leal, posso jurá-lo. Alma melhor não se acha no meu reino. Ide embora e fazei como vos disse.

(Sai Cranmer.)

Às lágrimas a fala lhe abafavam.

(Entra uma velha dama.)

GENTIL-HOMEM (dentro) — Voltai! Que ides fazer?

VELHA DAMA — Não voltarei; a notícia que eu tenho para dar-lhe deixa cortes o meu atrevimento. Que os bons anjos agora pairem sobre tua real cabeça e com suas asas benditas te protejam.

REI HENRIQUE — Leio tua mensagem no teu rosto. Deu-se o parto? Dize depressa “sim” e que é um menino.

VELHA DAMA — Sim, sim, meu soberano; e que menina! Que ora e sempre a abençoe o Deus do céu. É uma menina, que vos assegura para o futuro um filho. Vossa esposa, senhor, de vós reclama uma visita, para que conheçais essa estrangeira. Parece-se convosco como duas cerejas de um só galho.

REI HENRIQUE — Lovell! Lovell!

(Volta Lovell.)

LOVELL — Senhor?

REI HENRIQUE — Dai-lhe cem marcos. Vou depressa visitar a rainha.

(Sai.)

VELHA DAMA — Só cem marcos? Por esta luz, mereço mais. A um criado comum é que se paga desse modo. Hei de obter mais, ou brigarei com ele. Para ganhar tão pouco foi que eu disse que ela era a cara dele? Hei de obter mais; do contrário, desdigo-me. Batamos com força, enquanto o ferro está vermelho.

(Saem.)


 

CENA II

 

Um corredor que vai dar à Câmara do Conselho. Entra Cranmer; pajens e oficiais, de pé.

 

CRANMER — Penso que não estou nada atrasado. No entanto, o gentil-homem que mandado me foi pelo Conselho, urgentemente pediu que me apressasse. Quê! Fechado? Que significará tal coisa? Olá! Quem é que está de guarda?

(Entra o porteiro.)

Conheceis-me?

PORTEIRO — Sim, milorde, conheço-vos; mas hoje não vos posso ajudar.

CRANMER — Por quê?

PORTEIRO — Forçoso será que Vossa Graça aguarde o aviso.

(Entra o Doutor Butts.)

CRANMER — Está bem.

BUTTS — Em tudo isto há só maldade. Fico contente por haver passado por aqui sem tropeço. O soberano vai ser logo informado.

CRANMER (à parte) — É Butts, o médico do rei. Quando passava, que terrível olhar me dirigiu! O céu permita que com isso sondado não tivesse minha infelicidade. Com certeza concebido foi tudo Por pessoas que me têm ódio — queira Deus mudar-lhes de todo o coração nunca a malícia provoquei de ninguém — para humilhar-me. Deviam ter vergonha de deixar-me à espera. assim, na porta, um conselheiro como eles, entre pajens e lacaios! Mas faça-se a vontade deles todos. Paciente, esperarei.

(O rei e Butts aparecem em uma janela, no alto.)

BUTTS — A Vossa Graça quero mostrar um quadro muito estranho.

REI HENRIQUE — Que quadro, Butts?

BUTTS — Decerto Vossa Graça coisa igual não tem visto muitas vezes.

REI HENRIQUE — Com a breca! Onde é que há isso?

BUTTS — Ali, milorde; o alto posto ali vedes de Sua Graça de Cantuária, de guarda ora postado diante da porta, entre serventes, pajens e oficiais.

REI HENRIQUE — Ah! é certo. É ele mesmo. É assim que eles se acatam mutuamente? É bom que ainda haja alguém acima deles. Pensei que eles tivessem ainda um pouco de honestidade, ou mesmo algum resquício de decoro, que não lhes permitisse deixar um homem da posição dele e tão chegado a nós, numa antecâmara, na expectativa apenas da vontade de Suas Senhorias, como um criado carregado de embrulhos. Pela Santa Maria, Butts, isso é procedimento de gente sem caráter. Mas deixemo-los; corramos as cortinas; ainda havemos de ouvir falar sobre isso mais de perto

(Saem.)


 

CENA III

 

A Câmara do Conselho. Entram o Lorde Chanceler, o Duque de Suffolk o Duque de Vorfolk, o Conde de Surrey, Lorde Camareiro, Gardiner e Cromwell. O chanceler se coloca na ponta de cima da mesa, à esquerda, ficando acima dele vazia uma cadeira, Como que destinada para o Arcebispo de Cantuária. Os demais se sentam por ordem, de ambos os lados da mesa. Cromwell, na ponta de baixo, como secretário. O porteiro, em seu lugar.

 

CHANCELER — Abri a audiência, mestre secretário. Que nos traz hoje aqui?

CROMWELL — Se Vossas Honras me permitem, o principal assunto diz respeito à Sua Graça de Cantuária.

GARDINER — Já foi ele informado?

CROMWELL — Já.

NORFOLK — Quem se acha à espera, aí?

PORTEIRO — Fora, meus nobres lordes?

GARDINER — Sim.

PORTEIRO — Milorde arcebispo; há meia hora vossas ordens aguarda.

CHANCELER — Então, que entre.

PORTEIRO — Vossa Graça já pode entrar na sala.

(Cranmer entra e se aproxima da mesa do Conselho.)

CHANCELER — Meu bom lorde arcebispo, é com tristeza que eu aqui me acho e vejo esta cadeira privada de seu dono. Mas nós todos somos homens, de natureza frágil e sujeitos à carne; muito poucos serão anjos. Assim, pela fraqueza levado e a irreflexão, vós que a nós todos devíeis dirigir, vós desmandastes, gravemente, ofendendo o soberano, depois, as leis, e enchendo o reino todo, pelas prédicas próprias e dos vigários — já soubemos de tudo isso de doutrinas recentes, muito estranhas e perigosas, puras heresias, que, se não forem reformadas, podem produzir grande dano.

GARDINER — Nobres lordes, urge que essa reforma seja pronta. Quem quer domar cavalos pelas mãos não os leva, porque dóceis a ficar venham, mas lhes tapa a boca com freio resistente e a espora calca nos flancos até que eles obedeçam. Se permitirmos — por condescendência, por piedade pueril, pelo conceito, tão-só, de um homem — que se alastre doença tão contagiosa: então, adeus remédio! Quais serão do desídio as conseqüências? Revoltas, comoções, o Estado todo contaminado. Caro testemunho disso mesmo nos dão nossos vizinhos da alta Alemanha; é mui recente a coisa que a memória dorida nos compunge.

CRANMER — Lutei até hoje, meus bondosos lordes, assim na profissão como na vida, não sem grande trabalho, porque as minhas doutrinas e o decurso poderoso de minha autoridade, sempre juntos a mesma via certa percorressem. Sempre o bem tive em mira. Não existe — falo, milordes, com sinceridade — criatura que em consciência e no exercício de sua profissão mais ódio sinta do que eu aos destruidores da paz pública. Permita o céu que nunca o soberano venha a encontrar menos fiéis vassalos. Os que vivem da inveja e da malícia tortuosa ousam morder os mais prestantes. Suplico instante a Vossas Senhorias que nesta causa os meus acusadores, sejam quais forem, sejam confrontados comigo e falar possam livremente.

SUFFOLK — Não, não, milorde; sois um conselheiro; assim, ninguém se atreverá a acusar-vos.

GARDINER — Visto termos assuntos de mor peso, milorde, vamos ser convosco breves. É parecer de Sua Alteza e nosso que, visando à vantagem do processo, sejais daqui levado para a Torre, onde, voltando vós a ser um simples particular, vereis que muita gente contra vós deporá com ardimento maior do que esperais, receio-o muito.

CRANMER — Agradecido, meu bom Lorde de Winchester, sempre vos revelastes meu amigo. Por vosso parecer, sereis a um tempo jurado e juiz. Sois muito generoso. Percebo vosso intento: arruinar-me. Doçura e amor, milorde, mais assentam a um sacerdote do que a vã cobiça. Voltai a conquistar almas transviadas; não repilais nenhuma. Porque eu possa purificar-me, todo o peso ponde sobre minha paciência; tão pequeno trabalho isso há de dar-me, como escrúpulo vos causa praticar o mal amiúde. Poderia dizer muito mais coisas, mas o respeito a vosso ministério me obriga a moderar-me.

GARDINER — Não, milorde! A verdade, milorde, pura e simples é que sois um sectário. Vossas glosas tão polidas, a quantos vos compreendam não passam de palavras sem substância.

CROMWELL — Milorde de Winchester sois muito duro; permiti que vos diga. Os indivíduos de tal nobreza, ainda que faltosos, respeito sempre merecer deviam por tudo quanto foram. E crueldade fazer pressão em quem já está caindo.

GARDINER — Peço perdão, meu caro secretário; mas de quantos aqui na mesa se acham, sois o último a poder manifestar-se.

CROMWELL — Por quê, milorde?

GARDINER — Pois não sei, acaso, que sois adepto dessa nova seita? Não sois limpo.

CROMWELL — Limpo não sou?

GARDINER — Repito-o: não sois limpo.

CROMWELL — Quem dera que a metade disso fôsseis honesto, que então preces vos seguiriam, não o medo, apenas.

GARDINER — Nunca me esquecerei dessa linguagem desaforada.

CROMWELL — Nem de vossa vida desaforada

CHANCELER — É muito! É muito! Basta milordes. Que vergonha!

GARDINER — Pronto.

CROMWELL — Pronto.

CHANCELER — Voltando a vós, milorde, decidido, quero crer, foi por todos, que levado para a Torre sejais sem mais delongas. onde deveis ficar até sabermos o que decide o rei. Concordam todos, milordes?

TODOS — Concordamos.

CRANMER — Não há outro caminho de clemência? É inevitável que eu seja conduzido para a Torre?

GARDINER — Que outro caminho achar pretenderíeis? Sois enfadonho em demasia. Venham alguns guardas daí, para levá-lo.

(Entra um guarda.)

CRANMER — Para levar-me? Dais-me o tratamento que se dá aos traidores?

GARDINER — Recebei-o e até à Torre o levai com segurança.

CRANMER — Meus bons lordes, parai. pois ainda tenho algo para dizer. Olhai para isto, meus bons senhoras. Pela só virtude deste anel, eu retiro minha causa das garras destes homens e a confio a um mais nobre juiz: o rei meu mestre.

CHANCELER — É o próprio anel do rei.

SURREY — Sim, não é falso.

SUFFOLK — Sim, pelo céu, é o verdadeiro. A todos eu vos disse, no instante de quererdes tocar neste penhasco perigoso, que viria acabar por esmagar-nos.

NORFOLK — Acreditais, milordes, que o monarca permitirá que no dedinho, ao menos, deste homem nós toquemos?

CAMAREIRO — Não há dúvida; é mais que certo. E quanto a vida dele não vale junto ao rei! Só desejara poder sair decentemente disto.

CROMWELL — Tinha um pressentimento, quando fábulas e acusações fictícias reunia contra tal homem — cuja honestidade somente o diabo inveja e seus discípulos — que atiçáveis o fogo que vos queima. Agora, suportai-o.

(Entra o rei, lança-lhes um olhar severo e se assenta.)

GARDINER — Terrível soberano, como todos ao céu agradecemos diariamente por brindado nos ter com um tal príncipe, não só bondoso e sábio: religioso; um rei que com a máxima humildade da Igreja faz o principal objeto da própria honra, e que para dar mais força a esse dever sagrado, com respeito piedoso comparece pessoalmente ao nosso tribunal, porque sabendo fique da luta que se trava entre ela e seu grande ofensor.

REI HENRIQUE — Sempre mostrastes, Bispo de Winchester, grande habilidade no improvisar brilhantes elogios. Mas sabei que não vim para ouvir essas adulações de frente. São vazias por demais, muito finas, porque possam mascarar a maldade. Mas com isso não me atingis. Adulador cãozinho pareceis, que pretende conquistar-me só com mexer a língua. Porém faças de mim o juízo que fizeres, tenho-te por uni sujeito mau e sanguinário.

(A Cranmer.)

Senta-te, meu bom Cranmer. Só desejo ver quem tem a ousadia, o atrevimento de contra ti alçar um só dedinho. Por quanto há de sagrado, melhor fora morrer de inanição que um só momento pensar que este lugar não te pertence.

SURREY — Se a Vossa Graça for do agrado...

REI HENRIQUE — Não! não é do meu agrado! Imaginara que tinha em meu Conselho homens sisudos, de algum discernimento, mas não vejo nenhum como o quisera. Achais decente deixar que este homem, este bondoso homem — dentre vós muito poucos esse título podiam merecer — que este honesto homem ficasse à espera diante de uma porta como um sórdido criado? Uma pessoa da vossa posição? Oh, que vergonha! Estáveis obrigados pelas minhas instruções a esquecer-vos de vós próprios? Dei-vos poderes para que o julgásseis não como a um criado, mas um conselheiro. Entre vós vejo muitos que sem dúvida — mais por malícia do que honesto zelo — às mais terríveis provas o poriam, se viessem para isso ter ensejo. Mas tal não se dará, por certo, enquanto eu estiver com vida.

CHANCELER — Queira Vossa Graça, meu mui temido soberano, deixar que a todos nós eu justifique. A prisão dele foi deliberada — se há boa fé nos homens — mais para ele mesmo justificar-se plenamente perante o mundo do que por malícia, ao menos eu outro pensar não tive.

REI HENRIQUE — Bem, bem. Então honrai-o, meus senhores; dai-lhe, acolhendo-o, todo o tratamento, que ele o merece. A seu favor só digo que se um rei devedor pode sentir-se com relação a um súdito, eu me sinto desse modo a ele preso não somente pela sua afeição, mas por seus préstimos. Assim, deixai de me criar tropeços. Abraçai-o, abraçai-o! Sede amigos. Oh! por pudor! Milorde de Cantuária, quero fazer-vos um pedido e espero que não mo refuseis: ainda se encontra por batizar uma gentil menina. Vós sereis o padrinho, respondendo pelo futuro dela.

CRANMER — O mais potente monarca vivo ficaria ufano de uma tão subida honra. Como posso merecê-la, tão pobre e humilde súdito?

REI HENRIQUE — Vamos, vamos, milorde; estais querendo poupar vossas colheres. Tereis duas companheiras para esse ato: a velha Duquesa de Norfolk e a Marquesa de Dorset. São do vosso agrado? Mais uma vez concito-vos, milorde de Winchester: abraçai e amai este homem.

GARDINER — De todo o coração e amor fraterno.

CRANMER — O céu é testemunha de quão ledo me deixa esta palavra.

REI HENRIQUE — Bom amigo! Essas alegres lágrimas revelam teu fido coração. A voz do povo vejo em ti confirmada. É nestes termos: “Fazei ao Lorde de Cantuária alguma partida de mau gosto e um grande amigo ganhareis para sempre”. Vamos, vamos, senhores; perdemos muito tempo. Já não vejo o momento de fazermos uma cristã da minha pequerrucha. Unidos quero ver-vos até à morte. Honrados ficareis; eu, sempre forte.

(Saem.)


 

CENA IV

 

Pátio do palácio. Barulho e tumulto por trás da cena. Entram o porteiro e seu ajudante.

 

PORTEIRO — Não parais com esse barulho, marotos? Pensais que a corte seja jardim de urso? Rústicos, parai com esse falatório!

UMA VOZ (dentro) — Bom mestre porteiro, eu faço parte da despensa.

PORTEIRO — Pertenceis mas é à forca, para serdes enforcado, biltre. Isto aqui é lugar para tamanhos urros? Arranje-me uma dúzia de varas de macieira, mas bem fortes, que estas não passam de gravetos. Vou fazer-vos cócegas na cabeça. Tereis de ver batizados. Grosseirões! viestes procurar aqui cerveja e bolos?

AJUDANTE — Tende paciência, meu senhor; a menos que usássemos canhões, tão impossível nos será dispersá-los neste instante como obrigá-los a dormir na cama na primeira manhã do mês de maio. Isso nunca acontecerá. Mais fácil do que expulsá-los nos seria a igreja de São Paulo abalar.

PORTEIRO — De que maneira conseguiram entrar?

AJUDANTE — Como sabê-lo? Como é que a maré sobe? Tanto quanto distribuir pauladas foi possível a um pau de quatro pés — os pobres restos ainda podeis ver — não poupei nada, senhor.

PORTEIRO — Nada fizestes; é isso mesmo.

AJUDANTE — Não sou Sansão, nem Guido, nem Colbrando, para a todos ceifar. Mas se um, que fosse, eu poupei, que tivesse uma cabeça boa para alvo, seja moço ou velho, ele ou ela, cornudo ou corneador, que nunca mais um bom assado eu veja, no que jamais consentirei, nem mesmo por uma vaca inteira. Deus a livre!

UMA VOZ (dentro) — Estais ouvindo, mestre porteiro?

PORTEIRO — Não demora, já chego aí, meu bom senhor velhaco. Toma conta da porta, maroto.

AJUDANTE — Que quereis que eu faça?

PORTEIRO — Que tereis de fazer, senão derrubá-los às dúzias? Acaso isto aqui é Moorfield, para fazerem uma parada? Ou terá chegado a esta corte alguma índia do estrangeiro, com uma grande cauda, para que as mulheres nos venham sitiar dessa maneira? Deus me abençoe! Quanta sem-vergonhice está acontecendo atrás das portas! Por minha consciência de cristão, este batizado vai dar nascimento a um milheiro de outros batizados; vai haver aqui hoje pais e padrinhos, tudo junto.

AJUDANTE — Tanto maiores serão as colheres, senhor. Ali perto da porta há um sujeito que pelo rosto deve ser um caldeireiro, porque, por minha consciência, traz no nariz vinte dias de canícula. Todas as pessoas que se acham junto dele já passaram a linha; não precisam de outra penitência. Por três vezes bati na cabeça desse dragão de fogo, e três vezes seu nariz disparou para o meu lado; acha-se ali como um morteiro, para bombardear-nos. Ao lado dele está a mulher de um merceeiro, de muito pouco espírito, que tanto deblaterou contra mim, que lhe caiu da cabeça a sopeira de buracos, tal foi a conflagração que eu fiz despertar na república. De uma feita eu errei o meteoro e acertei na tal mulher, que começou a gritar: “Cacete, aqui!” Então percebi de longe que vinham em seu socorro uns quarenta bastoneiros, a esperança de Strand, onde ela tinha seus quartéis. Eles atacaram; eu resisti com galhardia; por último, vieram para cima de mim com cabos de vassoura. Continuei firme. Mas, de súbito, por trás deles, uma bateria de garotos, pequenos atiradores, dispararam para o meu lado tamanha saraivada de pedras, que eu tive de resguardar a honra e ceder-lhes o campo. O diabo estava no meio deles, por minha fé; tenho certeza disso.

PORTEIRO — São os rapazes que trovejam no teatro e se batem por pedaços de maçãs, e que nenhum auditório pode suportar a não ser o da Tribulação de Towerhill ou os freqüentadores de Limehouse, seus dignos confrades. já pus um par deles no Limbo Patrum, onde terão de dançar estes três dias, sem contar a sobremesa de duas chibatadas que ainda terão de receber.

(Entra o Lorde Camareiro.)

CAMAREIRO — Santo Deus! quanta gente aqui reunida! E sempre a chegar mais de toda parte! Até parece feira. Onde se metem esses porteiros, esses preguiçosos? Belo trabalho, amigos, consentindo que essa gentalha entrasse. Todos eles são vossos fiéis amigos dos subúrbios? Muitos lugares vão sobrar, decerto, para as senhoras, quando retornarem do batizado.

PORTEIRO — Como vê Vossa Honra, somos homens, apenas. Tudo quanto foi possível fazer sem que em pedaços nos deixassem, fizemos. Um exército não poderá contê-los.

CAMAREIRO — Por minha honra, se o rei me censurar por qualquer coisa, hei de pôr-vos em ferros, e isso logo, cingindo-vos as frontes, por castigo, com uma multa redonda. Sois mandriões; esvaziais os odres, quando tendes tanta coisa a fazer! Ouvi: trombetas! De retorno já estão do batizado. Rompei a multidão e abri caminho porque passe o cortejo livremente; se não, hei de encontrar algum convento em que possais vos divertir dois meses.

PORTEIRO — Ala para a princesa!

AJUDANTE — Olá, seu grandalhão! saí do caminho, se não quiserdes que eu vos dê dor de cabeça.

PORTEIRO — E vós aí, de jaqueta de camelão: descei da grade, se não quiserdes que eu vos empale com um desses varapaus.

(Saem.)


 

CENA V

 

O palácio. Entram trombeteiros, tocando uma fanfarra; depois, dois vereadores, o Lorde Maior, o pregoeiro, Cranmer, o Duque de Norfolk com o seu bastão de marechalato, o Duque de Suffolk, dois nobres com duas grandes bacias para os presentes do batizado; depois, quatro nobres carregando um baldaquim, sob o qual vem a Duquesa de Norfolk, como madrinha, que carrega a criança envolvida em um rico manto; uma dama da corte sustenta a cauda de seu vestido; depois vem a Marquesa de Dorset como segunda madrinha, e outras damas da corte. O cortejo atravessa a cena e o pregoeiro fala.

 

PREGOEIRO — Ó céu! do alto de tua infinita bondade envia uma vida próspera, longa e sempre feliz para a muito alta e poderosa Princesa da Inglaterra, Elisabete!

(Fanfarra. Entra o rei com seu séquito.)

CRANMER (ajoelhando-se.) — A Vossa Graça real e à boa rainha eis a minha oração e a dos meus nobres companheiros: que todas as venturas, toda a alegria que o céu tem de parte para a dita dos pais, a todo instante caiam sobre esta mui graciosa dama.

REI HENRIQUE — Meu bom Lorde Arcebispo, agradecido. Qual é o nome dela?

CRANMER — Elisabete.

REI HENRIQUE — Levantai-vos, senhor.

(O rei beija a menina.)

Com este beijo recebe minha bênção. Deus te ampare; nas mãos dele te entrego.

CRANMER — Amém.

REI HENRIQUE — Minhas nobres comadres, fostes pródigas. De coração vos agradeço. O mesmo fará esta senhorita, quando o inglês dela for suficiente.

CRANMER — Permiti-me falar, senhor, que o céu é que me inspira, sem que ninguém como lisonja tome minhas palavras, que há de o tempo dar-lhes plena confirmação. Esta real criança — que o céu a ampare sempre! — embora ainda no berço se ache a este país promete bênçãos inumeráveis, que maduras hão de ficar com o tempo. Há de tornar-se — dos presentes mui poucos hão de vida ter para ver tal coisa — inigualável modelo para todos os monarcas de seu tempo e dos tempos porvindoiros. Nunca a Rainha de Sabá foi vista mais ávida e sequiosa de virtude e de sabedoria do que esta alma pura há de revelar-se. As graças todas que as criaturas reais sempre exornaram e as virtudes que aos bons servem de adorno nela serão dobradas. A verdade vai niná-la; os celestes e sagrados pensamentos serão seus conselheiros. Será temida e amada ao mesmo tempo; os seus a abençoarão; seus inimigos hão de tremer como no campo o trigo, de tristeza cair deixando a fronte. Crescerá o bem com ela; em seu reinado todos hão de comer tranqüilamente, no seu lar próprios o que plantado houverem, cantando para todos os vizinhos belas canções de paz. Reconhecido será Deus em verdade; os que a cercarem, por ela guiados, entrarão na via direita da honra, assim engrandecendo, não por meio de sangue. Nem com ela há de acabar a paz. Do mesmo modo que essa ave prodigiosa, a virgem fênix, das cinzas, ao morrer, engendra a herdeira tal como ela, há de assim, Elisabete deixar a alguém seus peregrinos dotes — quando o céu a tirar desta caligem — que das cinzas sagradas da honra dela como astro se alçará a igual altura, fixo aí se mantendo. O amor, o medo, o sossego, a verdade, a plenitude que tiverem servido a esta criança passarão a esse alguém, indo apegar-se-lhe como a vinha ao tutor. Onde o brilhante sol do céu irradiar, a glória dele brilhará, a grandeza de seu nome novas nações fundando. Há de florir; e, como o cedro da montanha, os ramos estenderá para a planície em torno. Nossos bisnetos ou tataranetos hão de ver isso e ao céu entoar louvores.

REI HENRIQUE — Maravilhas nos contas.

CRANMER — Para a dita da Inglaterra será princesa idosa. Muitos dias verá, mas nenhum dia sem um feito qualquer para coroá-lo. Oh! desejara não saber mais que isso. Mas terá de morrer; sim, porque os santos a querem ainda virgem; como lírio imaculado baixará à terra e o mundo todo chorará por ela.

REI HENRIQUE — ó milorde arcebispo! Homem de novo me fizeste. Nunca, antes do nascimento desta criança, tivera eu qualquer coisa. Esta inefável profecia encantou-me de tal forma que, ao me encontrar no céu, ver só desejo o que esta criança faz e entoar louvores ao meu Criador. A todos agradeço. Meu bom Lorde Maior, a vós e aos vossos bons colegas declaro-me obrigado. A presença de todos me honrou muito; haveis de achar-me sempre agradecido. Sigamos, meus senhores; a rainha tereis de ver. Ela há de agradecer-vos, que, do contrário, ficaria doente. Não cuide ora ninguém de ir para casa. Hoje aqui todos ficarão, porque esta menina o dia vai encher de festa.

(Saem.)


 

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